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Crime de fuga e direito à não autoincriminação
- 3 de dezembro de 2018
A regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (CTN) (1) é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 907 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão recorrido que declarou a inconstitucionalidade do referido tipo penal e, consequentemente, absolveu o réu.
Denunciado pelo Ministério Público estadual, o réu foi condenado como incurso nas sanções do crime previsto no art. 305 do CTB. Ao julgar a apelação, o juízo de segundo grau a proveu para declarar a inconstitucionalidade do crime de fuga, com consequente absolvição do réu. Baseou-se, para isso, no art. 386, III, do Código de Processo Penal (CPP) (2), por entender que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo.
O Ministério Público estadual, ora recorrente, sustentou que o crime de fuga não ofende os direitos à não autoincriminação e ao silêncio, uma vez que o objetivo dessas garantias não abarca a simples exigência de permanência no local do acidente do agente que o tenha provocado. Não há obrigação legal de prestar declarações ou assumir culpa, mas apenas de evitar o uso de subterfúgios à ação do poder de polícia administrativo, viabilizando a identificação dos envolvidos em acidente de trânsito, inclusive para o fim de evitar futuras punições ou responsabilizações judiciais injustas.
Para o Colegiado, é admissível a flexibilização do princípio da vedação à autoincriminação proporcionada pela opção do legislador de criminalizar a conduta de fugir do local do acidente. De fato, tal procedimento não afeta o núcleo irredutível daquela garantia enquanto direito fundamental, qual seja, jamais obrigar o investigado ou réu a agir ativamente na produção de prova contra si próprio. O tipo penal do art. 305 do CTB apenas obriga a permanência do agente no local para garantir a identificação dos envolvidos no sinistro e o devido registro da ocorrência pela autoridade competente.
O bem jurídico tutelado é a administração da justiça, prejudicada pela fuga do agente do local do evento, uma vez que tal atitude impede sua identificação e a consequente apuração do ilícito, para fins de se promover a responsabilização cível ou penal de quem, eventualmente, provocar um acidente de trânsito, dolosa ou culposamente. Essa diligência administrativa, aliás, transforma-se em meio de defesa do próprio acusado.
A exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir eventual responsabilidade cível ou penal pelo sinistro nem, tampouco, enseja que contra ele se aplique qualquer penalidade caso não o faça. O condutor, após sua identificação pela autoridade de trânsito, pode optar, quando indagado, por permanecer em silêncio e não prestar nenhum esclarecimento acerca das circunstâncias do acidente.
Insta reconhecer que eventual declaração de inconstitucionalidade da conduta tipificada no art. 305 do CTB (1), em nome da observância absoluta e irrestrita do princípio da vedação à autoincriminação (nemo tenetur se detegere), caracterizaria evidente afronta ao princípio constitucional da proporcionalidade quanto à vedação de proteção deficiente.
Esse princípio pode ser relativizado pelo legislador justamente por possuir natureza de direito fundamental, que, no contexto da teoria geral dos direitos fundamentais, implica a valoração do princípio da proporcionalidade e seus desdobramentos como critério balizador do juízo de ponderação, inclusive no que condiz com os postulados da proibição de excesso e de vedação à proteção insuficiente.
A fragilização da tutela penal do Estado, mediante a visualização de óbices à responsabilização penal da conduta de fugir do local do acidente, deixa a descoberto o bem jurídico de tutela da administração da justiça que o Estado deveria salvaguardar por meio da norma penal, bem como, indiretamente, os direitos fundamentais que se busca proteger com a promoção de maior segurança no trânsito, sobretudo o direito à vida.
Além disso, descriminalizar o crime de fuga significaria efetivamente negar a vontade do Parlamento. Essa conduta é criminalizada porque a Constituição promete, em nome do povo, uma sociedade justa e solidária, o que não poderia ser garantido caso afastada a juridicidade de uma conduta de quem abandona o local do acidente para fugir à responsabilidade penal e civil.
Acrescente-se a isso a existência de norma de direito internacional vigente na ordem jurídica interna que abona essa opção feita pelo legislador. O Decreto 86.714/1981, que internalizou no Brasil a Convenção de Trânsito de Viena, prevê o comportamento do condutor e demais envolvidos em caso de acidente (art. 31).
Esse normativo dispõe que, “sem prejuízo do disposto nas legislações nacionais sobre a obrigação de prestar auxílio aos feridos, todo condutor ou qualquer outro usuário da via, implicado em um acidente de trânsito, deverá: (…) c) se exigido por outras pessoas implicadas no acidente, comunicar-lhe sua identidade” (Item 1, c). No mais, “se houver resultado ferida ou morta alguma pessoa no acidente, advertir à polícia e permanecer ou voltar ao local do acidente até a chegada desta, a menos que tenha sido autorizado por esta para abandonar o local ou que deva prestar auxílio aos feridos ou ser ele próprio socorrido” (Item 1, d).
Em precedente análogo à situação dos autos, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento no sentido de que o princípio constitucional da vedação à autoincriminação não pode ser interpretado de maneira absoluta. Essa relativização alcança aquele sujeito que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intuito de ocultar maus antecedentes, o que torna típica a conduta prevista no art. 307 do Código Penal (3), sem qualquer traço de ofensa ao disposto no art. 5º, LXIII, da CF (4) (RE 640139 – Tema 478 da repercussão geral).
A persecução penal admite a relativização dos direitos na hipótese de justificável tensão entre o dever do poder público de promover uma repressão eficaz às condutas puníveis e as esferas de liberdade ou intimidade daquele que se encontre na posição de suspeito ou acusado.
Nesse âmbito, o direito à não autoincriminação se insere no mesmo conjunto de direitos subjetivos e garantias do cidadão brasileiro, de que são exemplos os direitos à intimidade, à privacidade e à honra. Essa relativização é admissível, embora mediante a observância dos parâmetros constitucionais pertinentes à harmonização de princípios eventualmente colidentes.
Diante desse quadro, trata-se de garantia que não pode ser interpretada como o direito do suspeito, acusado ou réu a não participar da produção de medidas probatórias. A referida flexibilização possibilita que se efetivem, em maior medida, outros princípios fundamentais com os quais aquele colide no plano concreto, sem que isso acarrete qualquer violação à dignidade da pessoa humana.
O Tribunal asseverou, também, ser corolário da garantia contra a não autoincriminação a preservação do direito do investigado ou réu de não ser compelido a, deliberadamente, produzir manifestação oral que verse sobre o mérito da acusação. Esse direito, no entanto, sofre ponderável flexibilização diante do quadro alarmante dos delitos de circulação.
O direito do investigado de não realizar condutas ativas que importem na introdução de informações ao processo também comporta níveis de flexibilização, muito embora a regra geral seja a da sua vedação.
A jurisprudência do Supremo, historicamente, adotava uma postura restrita quanto à admissibilidade das intervenções corporais. Contudo, na linha do que se visualiza no cenário internacional, esta Corte, gradativamente, iniciou uma caminhada em sentido oposto. Um precedente exemplificativo desse processo é a Rcl 2.040/DF, na qual se decidiu que a autoridade jurisdicional poderia autorizar a realização de exame de DNA em material colhido de gestante mesmo sem sua autorização, tendo em vista o objetivo de investigar possível crime de estupro.
O direito comparado à luz da legislação e da jurisprudência dos principais países da Europa Continental admite a intervenção corporal coercitiva, desde que autorizada judicialmente, restrita à cooperação passiva do sujeito investigado ou acusado e sem ofensa à dignidade humana.
Ademais, a Corte enfatizou a diferença entre a situação dos autos e a de quem pratica um homicídio doloso no trânsito. Nos crimes dolosos, o dolo na prática do crime e o iter criminis são, desde o início, os atos preparatórios, executórios, a consumação e obviamente a evasão. Há um dolo para prática do crime, de modo que o agente não pode ser responsabilizado caso fuja do local do delito.
Por sua vez, o art. 305 do CTB não acusa, impõe ou aponta que o condutor do veículo seja um criminoso. Ao contrário, o que se pretende é preservar o local do acidente para proteger a administração da justiça, razão pela qual se impõe que os condutores lá permaneçam. O que se pune é o afastamento do local de acidente.
Por fim, o ministro Ricardo Lewandowski ponderou que o abandono do local do acidente pode ser legitimado em caso de eventual risco de agressões que o condutor possa vir a sofrer por parte dos circunstantes, ou até mesmo numa situação de lesão corporal sofrida pelo próprio motorista no sinistro. Nos casos concretos em que houver perigo de vida do causador do evento caso permaneça no local do acidente, o juiz poderá aferir a exclusão da antijuridicidade da conduta, tal como a legítima defesa ou o estado de necessidade.
Para o ministro Alexandre de Moraes, essas situações representam condutas atípicas, uma etapa anterior à excludente de ilicitude, porque o tipo penal exige que o condutor do veículo se afaste do local do crime “para fugir à responsabilidade penal ou civil”. Havendo necessidade de o agente evadir-se pelas circunstâncias apresentadas, não ocorre dolo específico do tipo.
Ficaram vencidos os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Dias Toffoli, que desproveram o recurso extraordinário. Para eles, o tipo penal do art. 305 do CTB viola o princípio da não autoincriminação. A CF assegura que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (4).
Segundo ressaltado, tal disposição vem sendo interpretada pelo STF em sentido amplo, abrangendo qualquer investigado ou acusado, e não apenas o preso. A cláusula contra a autoincriminação não se restringe ao direito de permanecer em silêncio, mas preserva o suspeito, investigado, denunciado ou o réu da obrigação de colaborar ativa ou passivamente com as autoridades, sob pena de infringência à cláusula do devido processo legal.
Mesmo que o condutor permaneça em silêncio, pode vir a produzir prova contra si. A comprovação da conduta criminosa pressupõe a configuração de autoria e de materialidade, e a permanência do imputado no local do crime inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando seu envolvimento com o fato em análise potencialmente criminoso.
Em sentido semelhante, o Tribunal consignou que a condução coercitiva do imputado para prestar informações, ainda que possa permanecer em silêncio, viola o direito à não autoincriminação (ADPF 395). Em idêntica lógica, o fato de o condutor do veículo poder permanecer posteriormente em silêncio não afasta a violação ao direito à não autoincriminação, quando obrigado a permanecer no local do acidente.
Há também desproporcionalidade por excesso ao se considerar a disparidade de tratamento em relação a outros delitos mais graves, como estupro ou homicídio. Nesses casos, o legislador não criminalizou a conduta do acusado que venha a evadir-se do local. Nesse sentido, criminalizar alguém que simplesmente deixa o local do acidente não se mostra harmônico com o princípio constitucional da proporcionalidade.
(1) CTB/1997: “Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: (…)”
(2) CPP/1941: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (…) III – não constituir o fato infração penal.”
(3) CP/1940: “Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: (…).”
(4) CF/1988: “Art. 5º (…) LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”
RE 971.959/RS, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 14.11.2018. (RE-971959)