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Prerrogativa de foro e interpretação restritiva
- 23 de julho de 2018
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Esse é o entendimento do Plenário, ao resolver questão de ordem para determinar a baixa de ação penal ao juízo da zona eleitoral para posterior julgamento, tendo em vista que: a) os crimes imputados ao réu não foram cometidos no cargo de deputado federal ou em razão dele; b) o réu renunciou ao cargo para assumir a função de prefeito; e c) a instrução processual se encerrou perante a 1ª instância, antes do deslocamento de competência para o Supremo Tribunal Federal (STF) (Informativos 867 e 885).
Prevaleceu o voto do ministro Roberto Barroso (relator), o qual registrou que a quantidade de pessoas beneficiadas pelo foro e a extensão que se tem dado a ele, a abarcar fatos ocorridos antes de o indivíduo ser investido no cargo beneficiado pelo foro por prerrogativa de função ou atos praticados sem qualquer conexão com o exercício do mandato que se deseja proteger, têm resultado em múltiplas disfuncionalidades.
A primeira delas é atribuir ao STF uma competência para a qual ele não é vocacionado. Nenhuma corte constitucional no mundo tem a quantidade de processos de competência originária, em matéria penal, como tem a do Brasil. E, evidentemente, na medida em que desempenha esse papel de jurisdição penal de primeiro grau, o STF se afasta da sua missão primordial de guardião da Constituição e de equacionamento das grandes questões nacionais.
O procedimento no Supremo é muito mais complexo do que no juízo de primeiro grau, por essa razão leva-se muito mais tempo para apreciar a denúncia, processar e julgar a ação penal. Consequentemente, é comum a ocorrência de prescrição, o que nem sempre acontece por responsabilidade do Tribunal, mas por conta do próprio sistema.
Portanto, o mau funcionamento do sistema traz, além de impunidade, desprestígio para o STF. Como consequência, perde o Direito Penal o seu principal papel, qual seja, o de atuar como prevenção geral.
O relator frisou que a situação atual revela a necessidade de mutação constitucional. Isso ocorre quando a corte constitucional muda um entendimento consolidado, não porque o anterior fosse propriamente errado, mas porque: a) a realidade fática mudou; b) a percepção social do Direito mudou; ou c) as consequências práticas de uma orientação jurisprudencial se revelaram negativas. As três hipóteses que justificam a alteração de uma linha de interpretação constitucional estão presentes na hipótese dos autos.
A nova interpretação prestigia os princípios da igualdade e republicano, além de assegurar às pessoas o desempenho de mandato livre de interferências, que é o fim pretendido pela norma constitucional. Ademais, viola o princípio da igualdade proteger, com foro de prerrogativa, o agente público por atos praticados sem relação com a função para a qual se quer resguardar sua independência, o que constitui a atribuição de um privilégio.
Além disso, o princípio republicano tem como uma das suas dimensões mais importantes a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos. A prescrição, o excessivo retardamento e a impunidade, que resultam do modelo de foro por prerrogativa de função, não se amoldam ao referido princípio.
A Corte registrou que essa nova linha interpretativa deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado no Inq 687 QO/SP (DJU de 25.8.1999).
Vencidos, em parte, os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, apenas quanto à restrição do foro aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Ambos consideraram que a expressão “nas infrações penais comuns”, prevista no art. 102, I, “b”, da Constituição Federal, alcança todos os tipos de infrações penais, ligadas ou não ao exercício do mandato.
Vencido, em parte, o ministro Marco Aurélio, tão somente quanto à prorrogação da competência para processar e julgar ações penais após a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais.
Vencido, em parte, o ministro Dias Toffoli, que, em voto reajustado, resolveu a questão de ordem no sentido de: a) fixar a competência do STF para processar e julgar os membros do Congresso Nacional exclusivamente quanto aos crimes praticados após a diplomação, independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão; b) fixar a competência por prerrogativa de foro, prevista na Constituição Federal, quanto aos demais cargos, exclusivamente quanto aos crimes praticados após a diplomação ou a nomeação (conforme o caso), independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão; c) serem inaplicáveis as regras constitucionais de prerrogativa de foro quanto aos crimes praticados anteriormente à diplomação ou à nomeação (conforme o caso), hipótese em que os processos deverão ser remetidos ao juízo de primeira instância competente, independentemente da fase em que se encontrem; d) reconhecer a inconstitucionalidade das normas previstas nas Constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal que contemplem hipóteses de prerrogativa de foro não previstas expressamente na Constituição Federal, vedada a invocação de simetria; e) estabelecer, quando aplicável a competência por prerrogativa de foro, que a renúncia ou a cessação, por qualquer outro motivo, da função pública que atraia a causa penal ao foro especial, após o encerramento da fase do art. 10 da Lei 8.038/1990, com a determinação de abertura de vista às partes para alegações finais, não altera a competência para o julgamento da ação penal.
Por fim, vencido, também parcialmente, o ministro Gilmar Mendes, que assentou que a prerrogativa de foro alcança todos os delitos imputados ao destinatário da prerrogativa, desde que durante a investidura, sendo desnecessária a ligação com o ofício. Ao final, propôs o início de procedimento para a adoção de Enunciado da Súmula Vinculante em que restasse assentada a inconstitucionalidade de normas de Constituições Estaduais que disponham sobre a competência do Tribunal de Justiça para julgar autoridades sem cargo similar contemplado pela Constituição Federal e a declaração incidental de inconstitucionalidade dos incisos II e VII do art. 22 da Lei 13.502/2017; dos incisos II e III e parágrafo único do art. 33 da Lei Complementar 35/1979; dos artigos 40, III, V, e 41, II, parágrafo único, da Lei 8.625/1993; e do art. 18, II, “d”, “e”, “f”, parágrafo único, da Lei Complementar 75/1993.
AP 937 QO/RJ, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 2 e 3.5.2018. (AP-937)