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Cotas raciais: vagas em cargos e empregos públicos e mecanismo de controle de fraude
- 29 de junho de 2017
É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta.
É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado em ação declaratória de constitucionalidade em que se discutia a legitimidade da Lei federal nº 12.990/2014.
A norma reserva aos candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos e empregos públicos. Prevê também que, na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão, após procedimento administrativo. A lei ainda dispõe que a nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros (vide Informativo 864).
Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou a questão das cotas raciais em três planos de igualdade, tal como compreendida na contemporaneidade: a) formal; b) material; e c) como reconhecimento.
A igualdade formal impede a lei de estabelecer privilégios e diferenciações arbitrárias entre as pessoas, isto é, exige que o fundamento da desequiparação seja razoável e que o fim almejado seja compatível com a Constituição. No caso analisado, o fundamento e o fim são razoáveis, motivados por um dever de reparação histórica e por circunstâncias que explicitam um racismo estrutural na sociedade brasileira a ser enfrentado.
Quanto à igualdade material, o Colegiado observou que o racismo estrutural gerou uma desigualdade material profunda. Desse modo, qualquer política redistributivista precisará indiscutivelmente assegurar vantagens competitivas aos negros.
Enfatizou, em relação à igualdade como reconhecimento, que esse aspecto identifica a igualdade quanto ao respeito às minorias e ao tratamento da diferença de um modo geral. Significa respeitar as pessoas nas suas diferenças e procurar aproximá-las, igualando as oportunidades. A política afirmativa instituída pela Lei 12.990/2014 tem exatamente esse papel.
Frisou haver uma dimensão simbólica importante no fato de negros ocuparem posições de destaque na sociedade brasileira. Além disso, há um efeito considerável sobre a autoestima das pessoas. Afinal, cria-se resistência ao preconceito alheio. Portanto, a ideia de pessoas negras e pardas serem símbolo de sucesso e ascensão e terem acesso a cargos importantes influencia a autoestima das comunidades negras. Ademais, o pluralismo e a diversidade tornam qualquer ambiente melhor e mais rico.
O STF concluiu que a lei em análise supera com facilidade o teste da igualdade formal, material e como reconhecimento.
Afastou a alegada violação ao princípio do concurso público. Afinal, para serem investidos em cargos públicos, os candidatos negros têm de ser aprovados em concurso público. Caso não atinjam o patamar mínimo, sequer disputarão as vagas. Observou que apenas foram criadas duas formas distintas de preenchimento de vagas, em razão de reparações históricas, sem abrir mão do critério mínimo de suficiência.
Rejeitou a apontada violação ao princípio da eficiência. Registrou ser uma visão linear de meritocracia a ideia de que necessariamente os aprovados em primeiro lugar por um determinado critério sejam absolutamente melhores que os outros. Tal conceito já havia sido rechaçado pelo ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da ADPF 186/DF (DJE de 20.10.2014), segundo o qual a noção de meritocracia deve comportar nuances que permitam a competição em igualdade de condições.
Afirmou haver um ganho importante de eficiência. Afinal, a vida não é feita apenas de competência técnica, ou de capacidade de pontuar em concurso, mas, sim, de uma dimensão de compreensão do outro e de variadas realidades. A eficiência pode ser muito bem-servida pelo pluralismo e pela diversidade no serviço público.
A Corte também não vislumbrou ofensa ao princípio da proporcionalidade. A demanda por reparação histórica e ação afirmativa não foi suprida pelo simples fato de existirem cotas para acesso às universidades públicas. O impacto das cotas raciais não se manifesta no mercado de trabalho automaticamente, pois há um tempo de espera até que essas pessoas estudem, se formem e se tornem competitivas. Ademais, seria necessário supor que as mesmas pessoas que entraram por cotas nas universidades estariam disputando as vagas nos concursos.
Reputou que a proporção de 20% escolhida pelo legislador é extremamente razoável. Se essa escolha fosse submetida a um teste de proporcionalidade em sentido estrito, também não haveria problema, porque 20%, em rigor, representariam menos da metade do percentual de negros na sociedade brasileira.
Quanto à autodeclaração, prevista no parágrafo único do art. 2º da Lei federal 12.990/2014, o Supremo asseverou que se devem respeitar as pessoas tal como elas se percebem. Entretanto, um controle heterônomo não é incompatível com a Constituição, observadas algumas cautelas, sobretudo quando existirem fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração.
Assim, acrescentou que é legítima a utilização de critérios subsidiários de heteroidentificação para concorrência às vagas reservadas. A finalidade é combater condutas fraudulentas e garantir que os objetivos da política de cotas sejam efetivamente alcançados, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e assegurados o contraditório e a ampla defesa. Citou, como exemplos desses mecanismos, a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso, a apresentação de fotos e a formação de comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração.
A reserva de vagas vale para todos os órgãos e, portanto, para todos os Poderes da União. Os Estados e os Municípios não estão obrigados por essa lei, mas serão consideradas constitucionais as leis estaduais e municipais que adotarem essa mesma linha.
Quanto aos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos, o Plenário exemplificou a forma correta de interpretar a lei. No caso de haver vinte vagas, quatro seriam reservadas a negros, obedecida a seguinte sequência de ingresso: primeiro colocado geral, segundo colocado geral, terceiro colocado geral, quarto colocado geral, até que o quinto convocado seria o primeiro colocado entre os negros, e assim sucessivamente. Dessa forma, evita-se colocar os aprovados da lista geral primeiro e somente depois os aprovados por cotas.
Os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli consignaram que a lei é constitucional apenas quanto ao provimento inicial dos cargos e empregos públicos. Após o ingresso na carreira, o sistema de cotas não deve ser usado na ascensão interna, a qual se dá mediante concursos internos de promoção e remoção com critérios específicos, determinados pela Constituição, de antiguidade e merecimento.
Os ministros Edson Fachin e Luiz Fux entenderam que o art. 4º da Lei 12.990/2014 se projeta não apenas na nomeação, mas em todos os momentos da vida funcional dos servidores públicos cotistas, tais como remoção e promoção.
O ministro Roberto Barroso (relator) esclareceu que a questão da promoção não foi enfrentada porque não consta do pedido nem foi discutida em memoriais.
Para o ministro Luiz Fux, por se tratar de política pública calcada no preâmbulo da Constituição Federal, a lei vale para todas as unidades federadas.
ADC 41/DF, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 8.6.2017. (ADC-41)